22 dezembro 2017

Papai Noel existe?

Eu estava caminhando no centro da cidade, as lojas já enfeitadas para o período natalino como nos anos anteriores, quando me chamou atenção uma cena rápida e corriqueira. Uma menininha, cinco anos de idade ou menos, agarrada à mãe pela mão, começou a aporrinhar a mulher por qualquer coisa que não compreendi de imediato. À medida que me aproximei entendi: a garota versava sobre coisas que o bom velhinho lhe traria neste natal. No que a mãe respondeu, meio ríspida: tudo bobagem, Papai Noel não existe! E puxou a pequena, que ainda virou a cabeça para trás, fitando pela última vez a boneca exposta na vitrine. Apressaram o passo e sumiram na multidão.

A cena me tocou porque fui uma criança que cresceu acreditando em Papai Noel. É claro que durante a infância de alguém nascido numa cidade do interior do Brasil em 1984, como eu, a figura tinha um apelo mais afetivo e menos comercial. Meus parentes jamais se fantasiaram como o personagem nem os presentes eram item essencial da data que figurava em torno da família reunida, de crianças correndo ao redor da mesa arrumada, de um arbusto não muito alto enfeitado de luzes e pacotes cenográficos, dos mais velhos cantando e tocando violão na varanda, de um aniversariante ilustre.

Tive de lembrar a criança que fui e quantas vezes escrevi cartinhas endereçadas ao Papai Noel – o Polo Norte nunca me pareceu tão próximo. Numa fase que gostei especialmente, datilografava as cartas, porque meu pai adquiriu uma máquina de escrever usada que, por muitos anos, foi meu brinquedo preferido. Mesmo crescida, uma criança grande, não deixei de lhe escrever por sucessivos natais, pois tinha irmãos pequenos e inventei uma obrigação de irmã maior: dar continuidade à fantasia até que eles mesmos decidissem o caminho a tomar. Não tenho dúvida de que a porta sempre aberta para a invencionice influiu de maneira positiva no meu campo de escolhas pela vida inteira; escolhas profissionais, inclusive.

Mas, seria uma falha desconsiderar que a fantasia não encontra espaço de fluidez em grande parte dos lares brasileiros. Que para as mais de 12 milhões de pessoas não-alfabetizadas do país, por exemplo, o ato de escrever uma cartinha com poucas palavras é impensável. Há poucos dias, um menino de oito anos desmaiou na escola, localizada no entorno da capital federal, Brasília, centro do poder e do descaso. Ele estava com fome. A fome é uma realidade brutal, não se alimenta de faz de conta. Como acreditar que a imaginação daquele pequeno e sua capacidade plena de aprendizagem também não estão morrendo de inanição?

Se eu escrevesse somente sobre a mãe matando a imaginação da filha no calçadão sem atentar para o fato de que ela também pode ter tido uma infância com todas as fantasias aniquiladas; se não me dispusesse pelo menos por um instante a calçar seus sapatos e imaginar que os passos dados por aquela mulher foram mais duros do que os passos que dei e que ainda hoje lhe doem os calos, estaria sendo, no mínimo, insensível.

Preciso revelar aqui que eu mesma respondia as cartas endereçadas ao bom velhinho e nunca tomei isso como fraude, mas como força criativa. Hoje apresento aos meus filhos representações que vão além dos personagens festivos para que eles não percam a capacidade de sonhar e sejam amigos íntimos dos próprios sonhos, como fui e sou. E que seus sonhos não reproduzam o individualismo desta geração, que sonhem coletivo e incluam. Um dia eles podem não acreditar mais em Papai Noel, que não é uma verdade ou uma mentira, é uma alegoria. Seria um desastre, contudo, se eles deixassem de crer na humanidade e na possibilidade de mudar o mundo.

Publicado no jornal Folha de Londrina, em 22 de dezembro de 2017.

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