11 outubro 2017

Um a um

Anamaria sofria mais do que tudo com aquela situação. Olheiras entregavam as passadas noites insones. Havia também as palpitações, cãimbras, falta de fôlego e a gagueira. É, gagueira. Tinha dado para gaguejar depois de moça.

Um fastio de dar dó: nada comia e, ainda assim, nada lhe cabia no estômago. Qualquer sutil tentativa era premiada com... vômito. Depois, unhas quebradas, queda de cabelo. Relutou tanto quanto possível o auxílio hospitalar, até que o impossível chegou. Cedeu então - ''pior do que está não haverá de ficar''.

Colocou a língua para fora. Tossiu. Novamente. Disse trinta e três trinta e três vezes. Colheu sangue. Cafezinho na enfermaria: não, obrigada! Tirou a roupa atrás do trocador - ''o escapulário, por gentileza''. Respirou fundo. Prendeu o ar. Soltou o ar. Outra vez. Voltaria semana que vem.

Quando doutor Onofre entrou no consultório, Anamaria já estava a sua espera - e até mais engraçadinha, com uma fita azul no cabelo. Olhos ligeiros percorrendo envelope por cima de envelope. Um pigarro barítono. Começou assim: muito bem, mocinha... Ela não compreendia uma palavra com clareza, mas balançava a cabeça toda afirmativa.

O diagnóstico veio junto com a mão no ombro dela. Que seria dali por diante? Anamaria tinha um amor, não um câncer.

* Esse texto recebeu menção honrosa no 1° Prêmio Escriba, da prefeitura de Piracicaba (SP), em 2011.

21 julho 2017

Para quando não houver mais brinquedos espalhados no chão

Meus filhos crescerão. É uma constatação meio besta que fico repetindo algumas vezes para que possa parecer realidade – apesar de já ser. Eles estão crescendo na marcha frenética do dia a dia, um crescimento rápido e quase imperceptível. Não precisam da minha presença para dormir, o que é um alívio e outro tipo de solidão. Reagem às investidas de “olha o aviãozinho”, tomando a colher da minha mão com independência. Não há mais aviões circulando pelos céus encarnados de suas bocas. Derramam um pouco de comida no chão. Errando o alvo parecem dizer, escancaradamente, que estão aprendendo sozinhos. Fecham o primeiro ciclo da arcada dentária. Não tem volta. 

Todas as noites, quando eles vão recarregar a bateria da vida para a manhã seguinte e estou agachada recolhendo a bagunça diária, percebo: há menos brinquedos espalhados, menos paredes riscadas, menos saliva nos blocos de montar, menos super-heróis mutilados e menos massinha de modelar nas cerâmicas e azulejos. Há dias em que meus filhos me ajudam a juntar tudo aquilo antes de subir para o quarto e quando desço, depois de me certificar que os dois dormem profundo, já não encontro tanta coisa a fazer, sento para jantar ou durmo no sofá sem notar. Aos poucos reconquisto o direito de saborear pratos quentes – o que parece uma novidade para quem já estava habituada a comer comida fria. A cada descoberta olho fixamente para cada um, preciso ter a certeza de que são eles mesmos; de que meus filhos verdadeiros não foram sequestrados durante a madrugada e de que não puseram umas crianças bem parecidas em seus lugares, crianças maiores e com mais astúcia.

Às vezes, acordo em meio a calma perturbadora. A casa morre enquanto eles estão dormindo. O vento morre. As flores se encolhem no jardim. É surpreendente que o dia amanheça. Então, tudo recomeça. Meu esforço vão para que o primeiro a levantar não desperte o que permanece dormindo. As roupas reviradas, os brinquedos a pilha miando, mugindo, cacarejando, relinchando nos meus ouvidos. Preparo tudo veloz como uma bala para ouvir de recompensa: eu não quero suco de goiaba, o pão está duro, quero o leite frio, tem formiga no açúcar. Escorrego no minicarro de bombeiros enquanto corro para procurar uma meia que se perdeu – sempre falta uma meia! Praguejo com fúria, em pensamento, e o que sai da boca é no máximo: inferno, quem botou esse carrinho aqui?! Consigo chamar a atenção dos dois, sentados no sofá esperando. Lançam para cima de mim olhares de anjo questionador. Sinto que sou impura e tola perto deles. Passo a mão pelos cabelos assanhados, desvio o foco, encontro a meia perdida.

Esses pequenos já começam o dia me dando grandes lições. A maior de todas – considerando o amor autodidata – é de paciência, certamente. Estão no carro, com os cintos das cadeiras afivelados, e quando fecho a porta do lado do motorista alguém diz que quer fazer cocô. Preciso correr com esse para o vaso porque, crescendo a jato como crescem, é claro, não usam mais fraldas. E depois da coisa feita nada de limpar o bumbum, fui eu quem ensinou que bumbum não se limpa, bumbum se lava e os danados aprenderam direitinho. Até isso deve ser tempo aproveitado. Eles não aceitarão a vida inteira, como os amigos, acompanhar os pais nas férias de final de ano. Um ou outro gritará da janela ao me ver abrir o portão da garagem rumo ao supermercado: “mãe, não esqueça a lâmina de barbear”. Meus filhos serão homens de barba – como isso era impensável na sala de parto.

Os meninos parecem crescer sozinhos, porém, é verdade que também estou envelhecendo. Daqui a pouco esses graus nos óculos não me servem mais, precisarei de lentes novas. A pele do rosto, do pescoço e do corpo inteiro estará menos elástica e mais seca, fará desenhos em mim. Fios brancos darão o novo tom do meu cabelo. Meus filhos estão crescendo para a juventude, eu estou passando para a velhice e para a morte. Por isso é incrível que o crescimento deles pese mais do que o meu envelhecimento. Talvez porque olho cada vez menos para o espelho. Prefiro sentir a calmaria efervescente do reflexo da minha alma na alma deles.

*Isolda Herculano. Texto vencedor do I Concurso de Crônicas Ivone dos Santos (2016) promovido pela Secretaria de Estado da Cultura de Alagoas.