27 setembro 2025

O cavalo no banheiro*

Dia qualquer no apartamento antigo com ares de casa, herança da tia-avó. Entrou no banheiro, passos rápidos, depois que o alarme do relógio sacudiu as paredes do primeiro quarto. Apareceu prendendo o cabelo no alto da cabeça, bochechando enxaguante bucal. Cuspiu verde na pia, esfregou os cantos dos olhos tangendo as remelas. Pelo espelho oval meio esfumaçado nas bordas viu o reflexo do improvável: um cavalo. Cavalo? Que alívio! Por certo não acordou de fato. E que sonho esquisito.

O sonho então se impôs enfiado desconfortável no meio do box aberto. A grande crina, parte do dorso e patas dianteiras para dentro. Do lado de fora cauda, garupa, ancas, patas traseiras quase tocando o vaso sanitário. Examinaram-se dissimulados, cada qual fingindo que o outro não se tratava de uma presença vívida. Da baia improvisada, visão meio turva, o animal mantinha a posição de antes, cabeça fixa para frente, mirando os azulejos portugueses, mas seus olhos laterias permitiam visão mais ampla do ambiente. Em total desvantagem, a anatomia humana não ofertou a ela tão completo disfarce, virou-se para entender a dinâmica da cena um tanto estática. O coração galopou. Decidiu voltar a dormir. Acordaria em atraso para o compromisso real e inadiável, porém, livre do pesadelo estranho. Retornou à cama desfeita.

Os olhos cerrados por apenas alguns instantes amanheceram de súbito à função soneca do despertador. Enfim, acordada. Abriu o zíper da roupa enquanto se encaminhava para o banheiro. Por que, diabos, dormiu de calça jeans? Ao transpassar a porta aberta, voltou-se de imediato para o box e o cavalo lá, na posição de antes. No espelho ela mesma sem remelas e sem bafo matinal. A sensação de minutos atrás se fez legítima, o cavalo de verdade. Atrasada ou em fuga correu em direção à sala, pegou a pasta sobre a mesa, a bolsa pendurada no encosto da cadeira e saiu.

Alguém, alguma coisa teria pedido autorização para subir de madrugada a seu apartamento? Não senhora, respondeu o porteiro. Óbvio. Quem trouxe o cavalo deve ter entrado pelo portão da garagem, alçado até o décimo terceiro andar pelo elevador de serviço, acessado o apartamento com uma chave mestra (isso ocorre nos filmes) e depositado o animal no banheiro social de forma discreta. Que tipo de gente se presta a esse serviço e por qual razão?

Na entrada da repartição onde trabalhava lembrou de puxar o fecho-ecler. Perdeu metade da reunião pelo imprevisto da manhã e a outra metade ficou perdida entre pensamentos. Que não foi sonho estava certa. Vagou a crença em delírios. Sim, necessitava férias. Chegasse à casa o delírio não estaria, ponto final. À noite, apartamento escuro, pendurou a chave, acendeu a luz do corredor e não teve mais tempo para acreditar que havia delirado. O cheiro de esterco lhe recebeu na porta como um bom anfitrião. O cavalo tinha ainda mijado o chão do banheiro e quebrado a tampa do reservatório de água da descarga. Contudo, não deu sinal de quem saiu do cômodo e durante o tempo que ela limpou o ambiente também não arredou o pé de lá.

Aquele cavalo devia medir um metro e oitenta de altura. Silencioso como o quê, rosto sereno, olhar infantil e presença devastadora. Pensou na fome do animal, o dia inteiro sem comer. O que pode trazer da geladeira trouxe, sabia não ser muito, morando sozinha não podia ter tanta reserva assim. Tudo foi consumido: feijão-verde cru, arroz cozido, batata, tomate, coentro, couve, banana, maçã, melão. E veio outra leva de bosta. Limpou o chão de novo. Precisava de um banho e como o cavalo se pôs do outro lado do banheiro, entre a porta de entrada e o espelho, invertendo a posição de início, cumpriu a ritualística da limpeza íntima quase como se ele não estivesse ali.

Antes de dormir, pensou passar a mão no telefone e falar com um amigo qualquer, contar da situação. Notou-se só na sua falta de coragem e exílio ou talvez não tivesse amizades. Os familiares moravam num interior distante, não a procuravam. Adormeceu à luz acesa. O dia seguinte, sábado, saiu logo cedo e numa loja de produtos agropecuários comprou feno e ração equina. Indicação do vendedor. Tomou um táxi, subiu com as encomendas no carrinho de supermercado dos condôminos. O espaço do banheiro social ficou pequeno demais para o cavalo enorme repartir. Ela teria de sair. Desocupou a dependência de empregada, que usava como despensa, para depósito exclusivo das coisas animal. O banheirinho acoplado serviu para si.

O cavalo comia muito e sem se exercitar foi ficando gordo em proporção. Ou – deixou de observar por tantos meses – se tratava de uma égua, o cavalo era fêmea e prenhe. Nessa época, desenvolveu pelo bicho um sentimento maternal; ele permitia que lhe trançasse a crina desde que fosse trança frouxa, ela tocava sem medo o chanfro branco que destoava do restante da pelagem amarronzada. Numa madrugada quente e com o mínimo de ruído possível, o cavalo-fêmea pariu um cavalinho macho. Quando ela acordou o pequeno já estava dando os primeiros passos bambos no chão escorregadio. Uma belezura. Mais ousado do que a mãe, o filhote começou cedo a explorar o apartamento inteiro, voltando sempre ao banheiro para fazer as necessidades, como uma informação genética gravada.

Os anos passaram rápido. Às vezes, o potro dava incríveis galopadas na sala – cujos móveis ela se livrou por completo. Chegou a receber alguma advertência do condomínio, embora ninguém entendesse direito aquele tipo de som produzido num lar sem filhos ou netos, um apartamento que só ecoava silêncios. Com três fêmeas e cinco cavalos machos, todos cagando no banheiro social, não lhe sobrava tempo; por sorte, saiu a aposentadoria. Teve a certeza de que a vida não teria dali em diante como surpreendê-la.

Certa noite, no entanto, acordaram-lhe barulhos incomuns partindo da sala, para onde se encaminhou ligeira, com curiosidade. Encontrou enfileirados os oito cavalos, até o cavalo-fêmea que nunca saía do banheiro; dois estavam para fora, na sacada, por falta de espaço. Após tantos anos de convivência cúmplice, só ali revelaram a condição de cavalos alados, dispondo diante dos olhos dela asas brancas que partiam dos garrotes e pousavam suave nos flancos. Fizeram esse movimento seguidas vezes, prontos para revoar. Ela quis ir junto e, pela força que os unia, a ideia pousou no entendimento deles. Montou o de maior asa, olhou a cidade, os poucos carros cruzando as avenidas, a troada distorcida, laçou os braços no pescoço nu do bicho, silenciosamente amando-o. Mas, não era mais voo quando o peso da loucura lhe puxou para baixo. Das janelas dos primeiros andares deu para ouvir o som do corpo ao chão, chegando e se espatifando.

*Esse conto foi publicado no segundo volume da Antologia Literária das Mulheres do Vale do São Francisco em Juazeiro, Bahia, no ano de 2025.

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